Capítulo 1
— Eles estavam todos mortos. Exceto eu, é claro. — O tom de Galanthea ficou sombrio. — Mas todos aqueles... Que eu amei, até hoje...
As chamas da fogueira dançavam em seus grandes olhos azuis enquanto ela fazia caretas para a sua plateia: uma companhia de anões, um alfaiate halfling, um comerciante, um soldado e alguns colegas de Oxenfurt. Ninguém pareceu interromper sua história e ela continuou…
— Viajamos pelo interior, uma jornada rotineira em nosso circuito anual de propriedades, tabernas bordeis... Onde encontrarmos pessoas dispostas a oferecer um tostão por um pouco de entretenimento. Foi uma manhã fria e uma grande névoa se formou à nossa volta, fazendo com que a floresta parecesse etérea. Uma bela vista, sinceramente. Na carruagem à frente, alguns dos atores faziam barulho. Joel e Elba. Eles estavam rindo à toa, ainda bêbados da noite anterior. Lembro claramente pois foi quando aconteceu... — ela pausou, deixando que o suspense aumentasse — os terrores voadores.
Os olhos do alfaiate abriram, intrigados. Alguns dos anões balançaram a cabeça e resmungaram termos pejorativos. O resto, no entanto, permaneceu quieto murmurando entre si, desinteressado na história dos monstros. Ataques eram algo comum e eles já ouviram todo tipo de coisa.
— Abruptamente, a atmosfera mudou. Os pássaros pararam de cantar, a ventania parou por completo. A névoa parecia ficar mais densa, mais presente, com as correntes passando pelas árvores, espalhando-se pela clareira. Consumindo-nos. Em questão de segundos, fomos todos tomados pela grande névoa e eu não via nada além do branco à frente. Nada. Nenhuma alma sequer.
— Alguns dos rapazes acharam incrível no começo e até dava para ouvi-los rindo. No entanto, isso não durou muito. Um grito de medo acabou com a felicidade, seguido de um berro ensurdecedor. E outro. As sombras balançavam na névoa sobre nossas cabeças, em todas as partes. Pulei da carruagem e escondi-me debaixo dela para me esconder. Em posição fetal na lama, ouvi todos os meus amigos morrerem. Os gritos de pesadelo sumiram um a um sem nada que eu pudesse fazer... E eu não passava de uma criança.
— Como você fugiu? — Perguntou o soldado, impaciente e ansioso para descobrir o que houve.
— Silêncio! Vamos ouvir o resto — berrou um anão.
Ela balançou a cabeça agradecendo e jogou alguns gravetos na fogueira. — Não conseguia mais ouvir meus amigos. Tudo que restou foi um cacarejo monstruoso do alto enquanto eu me escondia, morrendo de medo. Foi quando... pá! Algo pousou na beirada da carruagem. Uma longa cauda apareceu à minha frente... um berro gutural sobre a minha cabeça, muito perto. Não acredito em deuses, nunca acreditei, mas em um momento de desespero, certamente rezei. E, repentinamente, um raio brilhou no meio da neblina e um espectro de rones voou até a carruagem. Outro berro estridente enquanto a cauda batia no chão, ferida. Ao redor, ruídos e gritos. Silhuetas aladas na névoa explodiram em pedaços enquanto o fedor de carne e sangue preenchia minhas narinas, fazendo com que eu me engasgasse. Um dos demônios alados caiu do céu direto na terra ensanguentada, com seu corpo grotesco queimado e carbonizado, murchando aos poucos, tentando desamparadamente voar antes de ficar imóvel, sem vida. Foi quando ele apareceu das sombras: o homem que me salvou.
— Heh! — Uma pessoa encapuzada, encostada em uma árvore à beira da luz da fogueira, riu em contentação. Galanthea olhou para o homem de capuz por um segundo, questionando a sua reação, e decidiu ignorá-la para concluir a história.
— Depois de acabar com as criaturas, o meu herói apareceu, calmo e relaxado. Com energia pura brilhando nas pontas dos dedos, ele limpou o sangue dos monstros na espada antes de guardá-la. Em seguida, ele se ajoelhou e com uma voz ressonante e calma, ele disse, "Não tema, pequena. Você está segura".
— E foi isso. Nesse dia maldito, no meio da névoa, dentre os corpos dos meus entes queridos, quando toda a esperança foi perdida... minhas preces foram atendidas, de alguma forma. Mas não por algum deus, não mesmo — Galanthea sorriu. — Por um grande mago chamado... Alzur.
Capítulo 2
— Então foi por isso que deixou de ser bardo? Para deixar de ser Snowdrop? — perguntou o alfaiate.
— Ai, nossa, não! — respondeu Galanthea. — Foi no momento em que comecei!
— Então, por que terminar? Na sua idade, poderia ter escrito uma centena de baladas até agora. Talvez até mesmo mil!
Galanthea inclinou a cabeça, pensativa. Aquela pergunta fora feita muitas vezes desde que ela aposentara o violino. — Porque a vida muda, caro amigo. A vida muda e, muitas vezes, é melhor mudar com ela.
O halfling torceu os lábios, insatisfeito com a evasão óbvia, mas acenou relutantemente, concordando.
— Conte mais sobre esse seu mago renomado... — pediu o soldado, inclinando-se para a frente.
— "Renomado" uma ova! — disse um dos homens na parte de trás que, não muito tempo antes, parecera totalmente indiferente à história de Galanthea. — Está mais para infame! O cara é um rebelde e um louco, com um prêmio em sua cabeça, não algum salvador heroico de garotinhas.
— Ei, cuidado com a língua, rapaz! — O anão saltou novamente em defesa ela. — Afinal de contas, ele salvou a garota. Não pode ser tão mau assim.
— Mas por quê? — perguntou o comerciante, balançando os braços. — Por que sair do seu caminho para salvar uma criança... sem querer ofender. Claro, um feiticeiro tem coisas muito mais importantes com que ocupar seu tempo, certo? Ele estava só passando e deu de cara com a confusão? Pensou "por que não?" e resolveu entrar nela? Parece um tanto forçado, se quer minha opinião.
— Ninguém pediu sua opinião. E use a cachola, sim? — retrucou o anão. — Magos veem tudo! E podem se teletransportar! Em um piscar de olhos, pode estar aqui, ali, em qualquer droga de lugar. Qualquer idiota sabe disso.
— Sim, você tem toda razão, seria preciso um idiota para pensar isso. De qualquer forma, o ponto não é esse. O "motivo" é muito mais importante do que o "como". Portanto, tenho que insistir... por quê?
— Porque é isso que os heróis fazem, não é? — perguntou outro espectador.
Galanthea sorriu e tomou um gole de vinho. Ela sempre gostava de um debate acalorado e sabia muito bem como aquele assunto era delicado.
— Sim! Eles aparecem e salvam pessoas!
— Claro que não! Os magos são frios. Calculistas. Não se importam com os nossos problemas. De que adianta a eles nos salvar?
— Talvez ele estivesse caçando as feras voadoras em busca, talvez de ingredientes ou algo assim?
— Nada, eles têm aprendizes para fazer essas coisas.
— Talvez fosse então para ter um pouco de diversão, recreação ou...
— Vanglória! — A voz rouca cheia de escárnio rasgou o acampamento, interrompendo imediatamente a discussão. — E a porcaria do orgulho! — O grupo de viajantes se virou em uníssono e olhou para o homem coberto com um manto, que ainda se mantinha ligeiramente afastado, encostado preguiçosamente contra um carvalho seco. Fora a primeira coisa que ele dissera desde que se juntara à caravana, logo depois de Vizíma. A maior parte do grupo achara que ele era mudo ou retardado. Os olhos de todos repousaram sobre o homem encapuzado, esperando o que viria depois da explosão impetuosa. Mas continuaram esperando, pois ele permaneceu em silêncio e estóico em meio às sombras.
— Eu acredito... hmm, hmm — começou o halfling, interrompendo o silêncio constrangedor. — Desculpe. Hmm. Acredito que ele queria provar seu valor. Alzur. Ele queria ser galante. Como um cavaleiro.
— Ah, é mesmo? — respondeu Galanthea curiosamente. — E o que o fez chegar a essa conclusão?
— Bem, veja, um dos meus ancestrais, acredite, trabalhou na mesma propriedade em que Alzur cresceu. — Ele limpou a testa suada com um lenço esfarrapado. — Algumas vezes, ele nos contava histórias dos velhos tempos. Histórias do passado, sabe? Enquanto eu crescia, ouvi várias...
— Sim, sim! Chega de conversa fiada — interrompeu Galanthea. — Chegue logo ao ponto.
— Sim. Certo. Desculpe. Bem.. ahm... olhe só, tudo começou com a surpresa de uma criança...
Capítulo 3
— Não, não, não este tipo de surpresa infantil! Desculpe, escolhi mal as palavras. Quero dizer, mais como... uma "surpresa de bastardo", se preferir... pois, quando Alzur era apenas um bebê, foi deixado na porta de uma propriedade nobre nos arredores da cidade de Maribor, com somente um bilhete: "A mãe dele faleceu, ele é um dos seus".
O alfaiate saltou do tronco caído sobre o qual estivera e andou pelo acampamento, tentando, sem sucesso, imitar um narrador teatral.
— A suposição foi de que a mãe dele fora uma cortesã da casa de má reputação. No entanto, os vários chamados nobres da propriedade eram notórios pela devassidão e não houve como determinar com certeza a identidade do pai. Ninguém ousou arriscar atirar o possível fruto de seus atos aos lobos e, portanto, foi decidido que ele ficaria. Mas não foi um conto de fadas com final feliz. Nenhum homem ousou demonstrar afeição por medo de isso ser considerado como admissão da culpa, enquanto que as damas da corte tinham pena do pobre garoto e garantiram que fosse bem cuidado. Mas a pena é uma péssima substituta para o amor.
Sem falar que ele foi renegado e zombado pelas outras crianças por ser ilegítimo. Portanto, ele se escondia na biblioteca da propriedade. Ele lia dia e noite, absorvido por mundos maravilhosos e histórias corajosas de heróis poderosos. Um volume em particular capturou a imaginação dele, que o lia repetidamente toda semana. Um Guia de Virtudes da Cavalaria de... Sir Mateo de Metinna, se lembro bem. Ele ficou totalmente cativado pelos feitos de cavaleiros nobres e pelas virtudes da cavalaria que lhes inspiravam valor...
E, portanto, ele andava incessantemente pela propriedade e pelo campo em volta, buscando provas que demonstrassem suas virtudes, como honra, compaixão, generosidade, esse tipo de coisa, como um cavaleiro antigo. Ajudava onde podia, tentando, inutilmente, obter a aprovação do povo.
Entretanto, como era apenas uma criança, ele não compreendeu a virtude do valor. Como ele poderia provar sua bravura como os cavaleiros corajosos das histórias? Hein?
Bem, um dia, a caminho do mercado para fazer algumas tarefas, Alzur encontrou uma carroça de bandidos. Qualquer outro garoto teria simplesmente fugido ou, talvez, pedido ajuda. Mas não ele. Ele precisava provar seu valor. Portanto, ele entrou e, tolamente, confrontou os bandidos.
Eles encontraram Alzur horas depois, inconsciente, ensanguentado e surrado, caído ao lado da estrada. Ele levara uma surra tão grande que precisou de semanas para se recuperar! Mas ele se recuperou. Para a surpresa de todos, o encontrou o deixou ainda mais determinado a provar seu valor! Mas, desta vez, ele não esperou que surgisse uma oportunidade... o garoto louco foi procurar uma oportunidade.
E, mais uma vez, ele foi encontrado surrado, jogado em uma vala, à beira da morte! Mas nem mesmo foi suficiente para dissuadir o garoto. Mais problemas se seguiram. Mais surras. Mais recuperações. De novo e de novo, até que, um dia, algo um tanto inesperado aconteceu.
Mais uma vez, Alzur desaparecera, fazendo com que os nobres relutantemente começassem a busca por insistência de suas esposas. Mas, ao finalmente o encontraram, não foi uma criança surrada, não desta vez. Ah, não, ele estava ileso, parado imóvel em um beco, em choque, olhando fixamente para os cadáveres de três homens empilhados à sua frente, com a pele totalmente queimada.
No fim das contas, o caos corria pelas veias do garoto. Um grande poder que, dormente dentro dele, finalmente fora liberado. Ele conseguia canalizar magia... mas ainda não conseguia controlá-la. Portanto, a família, temendo pela segurança de seus membros, contratou os serviços de um mago poderoso para orientar o garoto, ajudá-lo a domar seu potencial. E foi o que ele fez. Com orientação, ele se tornou um feiticeiro famoso e talentoso... o mesmo que discutimos esta noite.
Mas acredito que aquela infância ainda o influencia. Ainda o faz procurar aquelas virtudes dos cavaleiros que o cativaram tantos anos antes... profundamente enraizadas nele. E foi por isso que ele salvou o dia, pois é o que sempre faz.
Pelo menos, é isso que acho...
Alguns dos viajantes começaram a resmungar e murmurar, criando uma confusão de opiniões. Mas o burburinho rapidamente parou quando Galanthea começou a falar. — Uma percepção curiosa. — Ela parou para pensar, batendo os dedos contra a caneca. — Eu concordo. A infância tem um papel importante em moldar nossa vida, mas não acho que somente virtudes de cavaleiros atraem Alzur. Não, acredito que há algo muito mais poderoso em andamento. A coisa mais poderosa do mundo conhecido, na verdade...
— Sim, e o que seria isso? — perguntou o anão.
— Amor.
Capítulo 4
— Amor!? — gritou o comerciante. — Que monte de asneira! Amor!? Esse foi o homem que matou metade do exército de Ellander só porque podia!
— Sim, eu disse "amor" por um motivo — garantiu Galanthea. — Eu disse "amor" por causa de algo que descobri na segunda vez em que encontrei Alzur... na segunda vez em que ele me salvou, diga-se de passagem. Dois a dois — disse ela com uma risada. — Em uma reviravolta infeliz do destino, eu me vi... de certa forma amaldiçoada. Ah, sim! Afligida por uma maldição que, de forma muito estranha, convergiam minhas habilidades como baladeira.
O anão soltou uma exclamação. — Então foi por isso que você aposentou o violino!
— Não, não, bem pelo contrário. A maldição transformou minhas melodias em canções encantadoras. O problema era que... a única coisa que eu conseguia fazer era cantar. — Ela sorriu. — Quando eu abria a boca para falar, só saía uma sequência de ritmos e rimas.
Alguns dos viajantes riram, divertidos, certos de que Galanthea estava apenas contando uma fábula.
— Foi um tanto divertido no começo, uma estranheza cômica. E a remuneração pelas minhas apresentações também era substancial. Mas, deixando as moedas de lado, rapidamente isso se tornou um fardo. Uma música perpétua, todos os dias. Se eu tentasse dizer apenas uma palavra, nada conseguia me impedir de despejar uma sequência de versos para acompanhá-la. Finalmente, resolvi procurar ajuda. Primeiro devido a uma experiência um tanto mortificante. Veja só, eu estava em um funeral e tive a infeliz ideia de perguntar onde... — o rosto dela ficou vermelho — ... poderia me aliviar. Até hoje, não ouso voltar lá por medo de reviver o constrangimento. — Ela estremeceu ao lembrar. — Meses se passaram sem um pingo de sorte em encontrar ajuda. Mas o destino, dissimulado como é, decidiu intervir uma vez mais. E, logo, vi-me na mesma estalagem do campo que um certo mago...
— Contei meu caso a Alzur, certo de que ele uma vez mais me ajudaria. Mas ele se recusou. Disse que tinha coisas muito mais importantes a fazer "Deixe algum outro pobre coitado perder tempo em casos curiosos de delírio". Mas eu fiquei por lá. Veja bem, ele ainda não conhecia minha persistência. Portanto, eu a mostrei a ele... com três dias inteiros de música. Cada balada, canção, poema e canto com que eu conseguia sonhar. Ele tentou usar magia para me silenciar, claro, mas não adiantou... a maldição não cedeu. Finalmente, ele desistiu, implorando que eu parasse. Concordou em investigar o assunto somente se eu jurasse manter a boca fechada.
— O que isso tudo tem a ver com amor? — perguntou o soldado.
— Bem, estávamos viajando para a cidade onde fui amaldiçoada, ficando em estalagens ao longo do caminho. Uma noite, Alzur ficou acordado até tarde com os rapazes do lugar, bebendo e jogando dados, e... veja bem, eu era muito barulhenta na época, como todos os jovens... e decidi vasculhar os pertences dele. Encontrei todo tipo de quinquilharias estranhas e maravilhosas. Mas, sendo uma jovem, fui atraída por um item em particular: um medalhão em formato de flor. Um lilás, na verdade. E... eu o experimentei... bem no momento em que Alzur entrou...
— Ele imediatamente ficou furioso, gritando e repreendendo-me de forma feroz. Fiquei assustada e... muito confusa. Era só uma bugiganga simples, afinal de contas. E eu não tinha estragado nem nada — disse ela com um sorriso amarelo. — Parece que o poder do sentimentalismo me iludiu na época. Mas logo ele se acalmou, até mesmo pediu desculpas pela explosão. Ele se sentou em frente à lareira, fedendo a álcool, e olhou para as chamas. A raiva deu lugar à tristeza. Em seguida, algo um tanto surpreendente aconteceu. Ele confessou para mim.
— Disse-me que tinha montado o medalhão muitos anos antes para alguém... uma pessoa muito querida. Até mesmo imbuiu magia no medalhão para mantê-la segura. "Lylianna", sussurrou ele. Ele falou dela com muito carinho, resmungando embriagado em memória dela. Expressou admiração pela ambição dela. Pelo que consegui entender, ela era obcecada com a ideia de um mundo mais seguro, sem monstruosidades assassinas escondidas em cada sombra. Uma visão grandiosa, com certeza. E ela trabalhou em direção a isso a vida inteira que, tristemente, se mostrou muito curta... pelo menos, para uma feiticeira.
— Ele não disse como ela morreu, só ficou em silêncio por muito tempo e caiu em um estupor embriagado, com os olhos cheios de pesar. — Galanthea parou, relembrando. — Ele nunca usou a palavra "amor". Mas, pela forma como falava dela, devido ao olhar em seu rosto ao se lembrar dela... não poderia ser nada diferente.
— Suponho que faça sentido — admitiu o anão. — Espere... ele... ele continuou o trabalho dela? Depois que ela morreu? Continuou, não é?
— Sim, acredito que sim. Uma obrigação com uma pessoa falecida pode ser muito difícil de deixar de lado.
— Sim! — O anão saltou, virando-se para encarar o comerciante. — E é mais um motivo pelo qual ele salva as pessoas de monstros! Isso satisfaz sua dúvida, senhor? Ha!
O comerciante ignorou a afronta. — Bem... e como diabos ele continuou o "trabalho" dela? Um homem correndo pelo continente matando feras em nome de seu amor ilusório perdido não faria muita diferença na quantidade delas, faria?
— Um homem? Minha nossa, não — respondeu Galanthea com um sorriso malicioso. — Não é só um homem...
Capítulo 5
— ... Bruxos! — exclamou o soldado —, ela está falando de bruxos!
— Como é? — questionou o comerciante, servindo casualmente outro drinque de um frasco de pele de ovelha.
— Bruxos. Pelo menos, foi assim que ouvi que eles eram chamados. — O soldado coçou o queixo. — Pense, como... um mercenário, só que melhorado com magia. Muito forte e rápido, mais do que qualquer homem. Eles andam por aí, solitários na estrada, ouvi dizer, implorando para matar monstros por dinheiro.
— Parece uma bobagem para mim.
— É mesmo? E o que você acha que sabe?
— Você disse "mercenários", certo? Bem, acontece que conheço um cara que talvez possa dar algumas informações sobre isso. — Ele acenou para o homem com o manto, sentado nas sombras. — Ele mesmo é um mercenário, imagine. Bem, mais um degolador de becos escuros, na verdade. Não é verdade, Degolador?
O homem com o manto cuspiu em resposta, fazendo com que o comerciante desse uma gargalhada.
— Não é o mais cortês dos cavalheiros, admito, mas uma reputação sólida de matança... que vi em primeira mão. É claro, eu estava procurando um acompanhante adequado. Resolvi jogar algumas moedas para ele para ver se me levaria para Maribor em segurança. Foi uma bela barganha, não foi? — Houve uma pausa. — Mas estou divagando. Degolador! Como especialista na questão de espadas de aluguel, o que acha desses "matadores de monstros excepcionais"?
O homem com o manto inclinou a cabeça e ponderou por um momento. — Um homem mata uma fera... e daí? Nada de excepcional nisso. Apenas histórias para dormir.
— E aí está! — declarou o comerciante, com um sorriso estampado no rosto. — Histórias para dormir!
— Não, não! Não é verdade. Essas histórias ouvi de homens confiáveis. De todos os lugares, eles são, dizendo exatamente a mesma coisa. Como eles contariam a mesma mentira? Diga-me!
— As mentiras se espalham depressa, meu amigo. Diversas vezes, mais depressa que a verdade.
O soldado balançou a cabeça negativamente. — Não, não...
— Escute, não estou dizendo que esses seus amigos não tenham visto homens bravos abater uma fera aqui e ali. Não vou negar as habilidades de luta de ninguém. Mas "soldados modificados magicamente" é uma bobagem completa, você tem que admitir. E mesmo que... mesmo que... — O comerciante saltou do toco, pegou uma pedra e jogou-a em alguns ratos que se escondiam perto do perímetro.
Os ratos guincharam e chiaram ao fugirem para os arbustos.
— Agora, onde eu estava? Ah, sim, mesmo se esses "homens bruxas"..
— Bruxos! Acabei de dizer!
O comerciante abanou os braços. — Sim, sim! "Bruxos"! Mesmo que existam, como você e seus amigos dizem, para que precisamos dele, de verdade? Os monstros são uma ameaça tão grande assim? Claro, admito, eles matam alguns infelizes aqui e ali, mas só os sem sentido, não é? Aqueles tolos ignorantes que se afastam demais do caminho, que acabam sendo devorados em algum pântano no meio do nada.
— Isso é um absurdo, é isso que é. Uma zombaria! — gritou o anão.
— Bastante preciso, na verdade! Você não tem dinheiro para comprar uma passagem segura? Então é bom ficar parado, onde é seguro. Pobre ou frugal demais para investir em uma boa escolta como eu? Então talvez não deva perambular pelo campo, para começo de conversa. Além do mais, os monstros provavelmente fazem um favor a todos nós, se parar para pensar... acabando com a escória da sociedade. Abatem o rebanho.
O soldado rangeu os dentes, reprimindo a raiva. — E o que torna você tão especial?
— Você não estava prestando atenção? Ou talvez não escute bem? — Ele acenou na direção do Degolador, que agora andava pela beirada do acampamento. — Como eu disse, tenho um senso astuto de autopreservação e, portanto, estou bem preparado para qualquer coisa.
— É bom se preparar para uma boa surra se continuar abrindo essa sua boca — retrucou o anão.
— Silêncio! — comandou o Degolador. Ele estava parado, totalmente imóvel, com a cabeça inclinada na direção da escuridão além do brilho da fogueira, concentrado em alguma coisa. — Falem baixo. É muito tarde da noite para tumulto. — Com a mão no cabo da espada, ele se afastou do acampamento.
— Com licença — persistiu o comerciante. — Onde pensa que vai? Degolador? — O Degolador, inabalado, desapareceu na escuridão sem dizer mais uma palavra.
— Ele tem razão — disse Galanthea. — É tarde e meus ossos velhos precisam de descanso. — Ela se levantou e começou a andar em direção à sua tenda. — Temos um longo dia amanhã.
— Sim, sim — resmungou o anão, tomando o resto da bebida. — Sim, temos isso mesmo.
Na hora seguinte, o grupo inteiro se recolhera e estava dormindo, até mesmo o vigia designado...
... Enquanto que, em algum lugar ali perto, dentre as sombras, dois olhos vermelhos brilharam na luz pálida do luar.
Capítulo 6
Roncos guturais soavam pelo acampamento, acompanhados do crepitar suave das chamas que morriam. Muito acima, a luz de uma lua cheia escapava por entre as nuvens, pintando tudo fora do brilho das brasas com uma cor assustadora.
Uma das tendas se mexeu. O comerciante cambaleou para fora, desorientado pela sonolência. Ele observou a silhueta de uma árvore grande no perímetro e andou em direção a ela, desviando dos viajantes adormecidos em volta do fogo.
Encontrando um lugar reservado nas sombras, ele abriu a calça e aliviou-se...
CHIIIIII!
O comerciante deu um salto, espalhando urina sobre os pés, ao girar em direção ao som. — Maldição!
Um rato estava parado sobre um toco próximo, olhando para o comerciante. Ele fez um barulho que parecia uma risada.
— Seu merdinha! — gritou ele, pegando várias pedras e jogando-a no roedor. — Xô!
O rato, inabalado pelo bombardeio, permaneceu onde estava, emitindo sons desafiadores.
— Certo! — declarou o comerciante, olhando em volta. — Vou mostrar a você, seu desgraçado... ah, aqui está! — Ele pegou uma pedra grande e lançou-a na direção da criatura. — Não. Diga. Que. Não. Avisei... HAAA! — Ao jogar a pedra pesada, o roedor saltou para longe, escondendo-se em um arbusto próximo.
— Há! — proclamou ele com um sorriso arrogante. — E que isso seja uma lição...
CHIIIIII, CHIIIIII!
O comerciante saltou, virando-se. Vários ratos estavam parados atrás dele.
— De onde diabos...
CHIIIIII! CHIIIIII! CHIIIIII!
Mais ratos saíram correndo das folhagens, fazendo um círculo em volta dele.
— O q-q-quê... — balbuciou ele.
Os ratos o encararam, um mar de olhos minúsculos brilhando com o luar.
— Degolador? — sussurrou ele. — Degolador... on-onde es-está...
Uma sombra lentamente cobriu a área, bloqueando o luar ao ficar acima do comerciante. Tremendo, ele se virou... "Degolador?"... para encontrar dois olhos vermelhos olhando para ele de cima, uma mandíbula espumando e incisos alongados de onde pingava uma saliva pútrida.
O comerciante soltou um grito aterrorizado no momento em que sua garganta foi rasgada.
Um exército de ratos se espalhou pelo acampamento, fazendo com que os viajantes saíssem das tendas e das camas, gritando e exclamando em meio ao caos.
Alguém gritou quando o torso desmembrado do comerciante voou e caiu no centro do acampamento. Em seguida, um monstro peludo apareceu das sombras. Ele tinha uma aparência intimidadora, com músculos expostos e a carne cheia de cicatrizes. O monstro soltou um berro, batendo a mandíbula imensa, e atingiu um anão que atacava, lançando-o sem esforço algum para a escuridão além do acampamento.
Os olhos do roedor gigante correram em volta e concentraram-se em Galanthea, que saía da tenda em um estado de confusão. Ele rangeu os dentes e avançou na direção dela, rosnando e babando.
POU!
Um dardo de besta se enterrou o ombro do monstro. A criatura gritou e arrancou a haste de madeira, quebrando-a com as mandíbulas de forma perversa enquanto procurava a origem.
POF!
Outro dardo, desta vez no tórax.
— Para trás! — O Degolador saiu correndo da floresta, largou a besta e desembainhou a espada. A lâmina brilhou com uma luminescência prateada quando ele a girou.
A fera rugiu e correu na direção dele. O Degolador ergueu a espada e preparou-se, esperando até o último momento possível... Ele fez uma pirueta para a esquerda e atingiu as costas largas do monstro com um movimento largo, lançando uma névoa vermelha sobre o acampamento.
Seguiu-se uma série de ataques, cortes e contra-ataques, acompanhada de sangue espirrando e uivos estridentes à medida que o homem com o manto comandava confiantemente o fluxo da luta, cortando com velocidade e precisão inacreditáveis.
Sucumbindo às lacerações, a abominação soltou um grito, ficou de joelhos e caiu para a frente. O vermelho foi absorvido pela terra em volta de seu corpo enorme.
O homem inclinou a lâmina, pronto para lançar o golpe final.
Um dos expectadores soltou uma exclamação quando o braço do monstro se ergueu, agarrando o adversário pelo pescoço. A fera rosnou e levantou-se, erguendo o homem acima do chão. As feridas no corpo desfigurado fecharam... a carne cortada e os músculos rasgados se juntaram novamente. A espada escorregou dos dedos do homem quando ele ergueu as mãos, agarrando as garras peludas que o seguravam.
Os expectadores estavam imóveis, observando enquanto o Degolador se debatia nas garras da era. Em seguida, em um momento que deixou todos os presentes atônitos, ele estendeu a mão em direção à face deformada do monstro e fez um gesto peculiar com os dedos.
Chamas surgiram na palma da mão dele, incendiando a monstruosidade, derretendo a face e o esterno. A criatura uivou violentamente, colocando a pata sobre o focinho ao soltar o homem e cambalear para trás.
Em um piscar de olhos, surgiu na mão do Degolador um orbe de couro com um pavio. Ele o acendeu com um estalar de dedos e jogou-o nos pés do gigante que gania.
A bomba chiou e acendeu...
BOOM!
O rato gigante explodiu em uma nuvem de carne e ossos queimados.
Os viajantes restantes, cobertos de sangue e entranhas, estavam parados, atônitos.
O Degolador foi até o corpo destroçado do comerciante, vasculhou a bolsa dele e pegou uma bolsinha. Ele olhou para a expressão boquiaberta dos outros, deu de ombros e guardou a moeda.
De boca aberta, o soldado gaguejou, apontando um dedo trêmulo para o homem com a capa. E disse uma única palavra de descrença: — ... Bruxo.
Capítulo 7
O sol brilhava sobre a caravana que seguia pela estrada poeirenta para Maribor. Em direção à parte de trás do comboio, Galanthea estava sentada na parte de trás de uma carroça, observando o bruxo intensamente quando ele se aproximou devagar, montado em um cavalo.
Ela o cumprimentou com um sorriso acolhedor. — Você tem minha gratidão absoluta pelos seus serviços na noite passada.
Ele franziu a testa, ressentido com o elogio, mas aceitou-o de forma relutante e acenou brevemente com a cabeça.
Galanthea riu para si mesmo quando lhe ocorreu algo. — Acho que, por extensão, Alzur me salvou mais uma vez.
O bruxo cerrou o maxilar e suas narinas se contraíram.
— Algum problema, meu caro? — perguntou ela. — Eu apostaria que você não veio até aqui para ouvir minha apreciação.
Ele demorou um momento para recompor as ideias. — Você conheceu mesmo Alzur?
— Ah... eu o conheci melhor do que a maioria das pessoas.
— Então por que cuspir merdas que sabe que não são verdade? — Ele inclinou a cabeça. — Talvez você esteja delirando. Ou é simplesmente cega.
Ela sorriu. — As verdades não são necessariamente universais, meu garoto. Algumas vezes, elas são apenas uma questão de perspectiva.
O bruxo resmungou e andou em silêncio por algum tempo. Em seguida, balançou a cabeça frustrado. — "Amor"...? — retrucou ele. — Se ele realmente se importasse com os outros, nunca teria feito o que fez. O que sem dúvida ele ainda faz.
— Você tem algo que gostaria de dizer. — Galanthea encarou o homem e reprimiu um bocejo. — O sono me escapou na noite passada, como pode imaginar, portanto, vá direto ao assunto... enquanto ainda estou consciente.
— Você tem algum ideia de como Alzur e os lacaios dele fazem bruxos?
— Não é com amor, deduzo eu...
— Eles pegam garotos pequenos. Tiram-nos da rua. Pagam aos pais, se for preciso. Fazem o que for preciso para colocar as mãos nessas cobaias novas. Veja bem, tem que ser crianças... é o que nos dizem. Cosimo, o mago mais velho, que era um idiota de barbas brancas, sempre falava algumas asneiras sobre... maleabilidade. Ele e Alzur nos chamavam de blocos de argila úmida, prontos para serem moldados. Tão desconectado. Depois de viver por tantos anos, diziam eles, a vida cobra seu preço e a argila, bem, ela assenta. Endurece. Tentar remodelar um homem adulto é impossível porque ele quebra. Portanto, crianças são as únicas que podem ser sujeitadas às mutações. Pelo menos, são as únicas que têm alguma chance. Mesmo assim, a maioria acaba quebrando. — O bruxo encarou Galanthea, avaliando a reação dela. — Muitos dos garotos que conheci agora dormem em covas rasas.
Ela evitou o olhar dele e estudou os pastos ao longo da estrada.
— Sim... crianças mortas não são o melhor material para baladas, não é mesmo?
Virando-se de novo para o bruxo, ela permaneceu em silêncio, com os olhos cheios de curiosidade.
— Nós mesmos tivemos que enterrá-los, com os corpos destroçados e os rostos contorcidos... a boca ainda aberta para o grito final. O problema é que eles foram os que tiveram sorte. Saíram rapidamente. O restante de nós, pobres coitados, tiveram que continuar e aguentar as diversas "Provações" de Alzur, como ele as chamava. Como se fossem feitos heroicos que optamos por aceitar para provar nosso valor. Como se tivéssemos escolhido passar por aquele inferno para a validação daquele imbecil.
— Você diz que ele faz isso tudo por causa de uma visão de um mundo melhor. Eu digo que é mentira... ele faz isso por si mesmo. Vanglória. Ajudar os outros é apenas... um bônus. Claro, finge compaixão às vezes, quando há olhos sobre ele. Como quando os tolos que financiavam os projetinhos sórdidos dele iam visitar. Ah, ele fazia um belo espetáculo para os aristocratas. Muito hospitaleiro enquanto nos mostrava. Gabando-se de seu sucesso. Seu brilhantismo. "Vejam só o que o Grande Alzur conjurou para vocês, cavalheiros". Desgraçado arrogante. — Ele emitiu um som de desprezo. — Depois, contente com o investimento, eles iam embora e o imbecil voltava imediatamente à indiferença fria. Voltava para sua torre. Nós não o víamos de novo até que a próxima provação estivesse pronta. E não eram ocasiões muito felizes para nós. Não... éramos apenas um meio para um fim para aquele idiota, uma forma de estabelecer a reputação dele. Garantir seu legado. — O olhar dele ficou perdido enquanto ele ponderada. — Éramos apenas argila úmida pronta para ser moldada de acordo com a vontade dele.
Um momento se passou.
— Você conta uma história interessante, bruxo. — Galanthea abriu um sorriso leve. — Já considerou seguir a profissão de contador de histórias?
— Zombe se quiser, mas é a maldita verdade, dane-se a perspectiva. — Ele pigarreou e cuspiu na terra. Em seguida, voltou a se perder nas lembranças.
Os olhos dela permaneceram no bruxo enquanto ele andava ao lado da carroça, perdido em pensamentos.
— Sabe de uma coisa... — Ela fez uma pausa, escolhendo as palavras com cuidado. — Estou sinceramente grata por você estar conosco na noite passada. Espero que saiba disso.
O bruxo hesitou e, em seguida, assentiu. — Eu deveria ir na frente... garantir que nenhuma surpresa nos aguarde no caminho. — Ele piscou algumas vezes para afastar uma lembrança, segurou as rédeas do cavalo, disse "Aproveite a viagem" e galopou para longe.
Capítulo 8
Galanthea se reclinou na parte de trás da carroça ao olhar para o céu sem nuvens. Ela piscou lentamente, com as pálpebras pesadas ao escutar o trote rítmico dos cavalos mais à frente...
... Muito acima, uma revoada de pássaros circulou pelo azul imenso. Um deles soltou um grito infernal. Ela espremeu os olhos e percebeu que não eram pássaros. Asas largas e irregulares batiam esporadicamente, e longas caudas com escamas brilhavam atrás delas. Os terrores voadores desceram sobre a caravana. Um deles gritou ao explodir em uma bola sangrenta. Depois outro e mais outro. Uma chuva de sangue e entranhas caiu sobre a caravana.
A voz de Alzur reverberou. — Não tema, pequenino. Você está seguro.
A chuva vermelha mudou para água clara ao bater contra a parte externa de um prédio da idade, com um brilho quente irradiando das janelas.
No interior, corpos emaciados tossiam e gemiam ao se amontoarem em grupos de homens, mulheres e crianças, tremendo e choramingando. Um vulto usando um casacão preto encerado e uma máscara com bico andou por entre os corpos, cutucando-os de forma inquisidora com a bengala.
Em um palco improvisado com caixotes, uma jovem Galanthea, usando roupas masculinas de trovador, tocava violino e cantava uma canção alegre para o público doentio. Os olhos fundos brilharam com alegria distorcida ao sorrirem em meio à agonia.
Uma voz rouca e frágil cortou a cena. — Ai, pobre e doce coisinha. A doença, está em você. Enterrada bem no fundo.
Galanthea parou de tocar e baixou o instrumento, arregalando os olhos. Uma congregação de corpos estava sentada diante dela, os corpos nus murchos e apodrecidos. Cada um usava uma máscara com bico. Um por um, começaram a piar, cada vez mais alto. Uma sinfonia de piados roucos consumiu o lugar.
As velas apagaram, lançando o aposento na escuridão e em um silêncio assustador.
— A morte ronda e a sua luz apaga. — Dois olhos brilharam no escuro. — Mas não se desespere, minha criança, a Velha Thelma pode curar sua podridão.
As chamas acenderam em uma lareira central, iluminando o interior de um chalé pequeno. Havia uma variedade de bugigangas empilhadas em volta do aposento. Corvos adornavam as prateleiras e as vigas, crocitando ao saltarem em volta.
A jovem Galanthea, magra e pálida, estava sentada à frente do fogo, olhando para a velha enrolada em plumas pretas no outro lado das chamas.
— Você fará um juramento e sua música continuará — disse ela, mostrando os dentes para a jovem —, e a Velha Thelma garantirá que vá em frente... que você viverá. — Ela deu uma risadinha.
As chamas da lareira aumentaram, espalhando-se pelo piso de madeira e subindo pelas paredes, consumindo tudo.
No meio de uma clareira escondida, um chalé queimou violentamente. Um grito angustiante soou acima do inferno que rugia. — Criança! O que você fez?!
Galanthea estava parada na clareira, observando a destruição ardente com olhos molhados.
A voz de Alzur ecoou em volta. — Basta assentir, Snowdrop, que será feito.
Uma mão apertou o ombro dela. Galanthea se virou e viu Alzur parado ao seu lado, com o rosto e o peito manchados de sangue. Ele se ajoelhou diante dela e um sorriso maldoso surgiu em seu rosto. — Dois por dois. — Ele riu.
O fogo devorou a clareira.
O grito hediondo aumentou...
Galanthea abriu os olhos rapidamente e endireitou o corpo, sentindo a pele escorregadia por causa do suor.
Recuperando o fôlego, ela olhou em volta e percebeu que a carroça tinha parado.
Ela ouviu sons de uma discussão. Uma voz estridente gritou: — Não estamos brincando, ouviu? Recuem... mas que droga, recuem!
Ela saltou da parte de trás da carroça e viu que tinham parado perto de uma estalagem em uma encruzilhada. Uma placa de madeira dizia: "Cruz Dupla".
Galanthea saiu de trás da carroça e viu a caravana rodeada por um bando de homens e mulheres com roupas de peões, armados com espadas, foices e forcados enferrujados. No meio, uma mulher magra brandia uma besta, com as mãos tensas e trêmulas, apontada para o soldado.
O soldado deu um passo na direção dela. — Vamos, não seja tola. — Ele deu mais um passo, um pouco agressivo demais. — Você não precisa...
TWANG.
Uma flecha voou, atingindo o soldado no joelho. Ele gemeu e agarrou a flecha, caindo no chão logo em seguida. — Sua desgraçada!
— Eu-eu avisei, eu avisei — gaguejou ela, olhando em volta para os expectadores. — Nenhum de vocês tente nada, está bem? Ou... ou verão o que acontecerá! — exclamou ela nervosamente enquanto procurava depressa outra flecha. — Alguém tem algum problema com isso?
Nenhum dos viajantes respondeu.
— Ótimo! — A mulher acenou com a cabeça para um de seus homens. — Levem todo mundo lá para dentro, fora do caminho.
Capítulo 9
— Mas que porcaria de sorte a nossa — resmungou o anão ao acender outra vela, colocando-a sobre um dos barris no canto do sótão.
— Por favor, tenha cuidado... com as chamas — advertiu o outro. — Se não, vamos pular da frigideira para, bem, você sabe...
— Ora, não se preocupe. Minhas mãos são firmes como pedra. — Ele acendeu outra vela e colocou-a em uma prateleira. — Quanto tempo faz que está aqui, garoto? — perguntou ele ao estalajadeiro, que estava sentado em um barril.
— Ah... não faz muito. Alguns dias, talvez. — O estalajadeiro olhou para o grupo de viajantes — Vocês são os primeiros que eles...
— Roubam? — interrompeu o anão.
— É. Desculpe. Não levem para o lado pessoal. Eles não são bandidos... não de verdade. Eu até conheço a maioria. São principalmente fazendeiros locais e ajudantes. Mas, com essa seca há tanto tempo, as pessoas ficaram desesperadas... realmente desesperadas. Portanto, elas estão... improvisando.
O soldado soltou um gemido quando Galanthea apertou trapos em volta de seu joelho ensanguentado.
A poeira caiu do teto quando passos firmes percorreram as tábuas acima da cabeça deles. Ouviram também vozes abafadas.
— Lamento sobre o seu amigo. Tenho certeza de que não era a intenção deles.
— Não se preocupe, ele vai ficar bem. Não vai?
O soldado resmungou.
— Mas chega de ser soldado, hein? — disse ele rindo. — É melhor se acostumar ao trabalho de guarda. Haha! — Ele riu ao acender uma lamparina de óleo, iluminando uma pintura grande que ficava na parede traseira. A tela enorme ilustrava um campo de batalha imenso. Um lado erguia estandartes pretos e brancos em celebração triunfante, enquanto o outro exército se encolhia sob uma chuva de fogo que caía do céu. Dentre os vitoriosos, um mago de aparência ilustre estava parado orgulhoso, com os braços erguidos, rodeado de runas luminosas.
— A batalha final da Guerra Infinita — informou o estalajadeiro. — A "Cruz Dupla de Alzur", é o nome da pintura. Nós recebemos... quer dizer, recebíamos muitas pessoas de Ellander de passagem e pareceu ser algo de mau gosto. Portanto, nós a guardamos aqui, fora do caminho. — Ele riu. — Mas não há muito o que fazer sobre o nome da estalagem.
— Então é verdade? — perguntou o outro anão. — Alzur usou magia para aniquilar um exército?
O anão ergueu a lamparina para iluminar a pintura. — É, parece que sim.
Mais poeira caiu do teto quando as pessoas andaram no andar de cima. As vozes indistintas ficaram mais altas.
— Então vocês ouviram falar dele? Alzur? — perguntou o estalajadeiro.
— É, algumas histórias aqui e ali. — O anão observou o exército em chamas, com os soldados correndo e gritando ao morrerem. — Eles não tiveram a menor chance.
O estalajadeiro levantou do barril e andou até a pintura. — A arte não mostra, mas dizem que ele abriu um portal. Usou um feitiço para evocar alguma coisa horrível de, bem... outro mundo, acho. As pessoas falam sobre como o céu se abriu e uma tempestade de fogo caiu sobre o campo de batalha Mas não foi um dragão nem nada disso. Não... muito pior... — Ele passou a mão no bigode. — Seja o que for, acabou com o exército deles, uma derrota absoluta. E Ellander, bem, eles não tiverem outra opção além de se renderem. Entregaram o trono de Vizíma para o Duque de Maribor no dia seguinte. Isso finalmente acabou com a Guerra Infinita.
— Não é certo — retrucou o anão, olhando para a tela. — Isso é trapaça. As batalhas devem ser travadas com honra, em pé de igualdade. Nada dessa... porcaria de outro mundo. Aqueles homens não deveriam ter morrido dessa forma.
— Sim. Você tem razão, tenho que concordar — disse o halfling.
— Ele fez isso... — Galanthea ergueu o olhar, com expressão sombria — ... para salvar vidas.
O anão emitiu um som de desprezo. — É, moça, é! E eu transo para manter a castidade!
— Não, não, ela tem razão — corrigiu o estalajadeiro. — A Guerra das Adagas foi realmente uma coisa horrível. Um banho de sangue sem fim nestas terras, por gerações, só para que um Duque ou outro pudesse se sentar em um trono ligeiramente maior.
— Sim, ouvi falar sobre as escaramuças, mas por que durou tanto tempo? — perguntou o anão.
— Bom — disse o estalajadeiro ao se sentar novamente no barril. — Os dois lados tinham força igual e viram-se em um impasse constante, sem que nenhum lado ganhasse mais do que um punhado de batalhas. E, com esse equilíbrio, veio a esperança de uma vitória eventual, acho, para os dois lados. Por isso, nenhum dos Duques recuou, nem os filhos deles... nem os filhos dos filhos. Eles só... continuaram a mandar homens para a matança, sem parar... por dever, honra, orgulho ou qualquer outra mentira que os nobres diziam aos peões para justificar o sacrifício. E "sacrifício" é uma forma muito leve de dizer. Naquelas terras, seria difícil encontrar uma família que não tenha perdido vários ancestrais naquela maldita guerra.
O anão balançou a cabeça solenemente.
— Sem a intervenção de Alzur — concluiu o estalajadeiro —, não há como saber por quanto tempo mais o banho de sangue teria continuado...
O anão cerrou as sobrancelhas. — Sim... Mas isso não é certo, é? Fazer algo assim... Ele não deveria ter mexido com o destino dos outros...
— Mexer com o destino dos outros... — disse Galanthea, sorrindo — ... é o que ele faz de melhor.
Uma voz abafada gritou algo no andar de cima, seguida de vários barulhos surdos.
FLEI!
Um grito estridente soou.
Capítulo 10
O bruxo voltou para a estrada poeirenta...
Felizmente para a caravana, a única coisa que os aguardava era um fornecimento constante de restos mortais de animais espalhados pelos campos. Os ossos estavam limpos. Vítimas da seca, suspeitou ele. Pobres coitados.
Ele se aproximou da estalagem na encruzilhada. A caravana já deveria ter chegado e, sem dúvida, pararia para passar a noite. Depois, precisariam de apenas metade de um dia para chegar à cidade de Maribor... Ele franziu a sobrancelha, meditando: por que vir tão longe depois de já ter o dinheiro? Seu empregador estava morto e ele não tinha mais nenhuma obrigação. Pelo menos, não uma obrigação profissional...
Ele pigarreou e cuspiu na terra. Era apenas uma forma de passar o tempo, concluiu ele. Apenas algo para fazer...
Ao se aproximar da estalagem, ele viu cavalos e carroças familiares na parte da frente, como esperado. Mas a cena estava estranha, alguma coisa não estava certa...
Ele andou cuidadosamente e inspecionou, de cima do cavalo, a terra mexida. Em seguida, desceu da cela e ajoelhou-se para ver melhor. Algum tipo de luta, deduziu. Gotas de sangue seco, sem dúvida alguma. Ele franziu a testa. — Droga.
O bruxo deu um comando casual ao garanhão, "Fique". Em seguida, andou até a estalagem.
Do lado de fora, um homem corpulento, com uma túnica amarela suja, estava sentado em um banco, brincando com uma adaga e olhando friamente para o bruxo que se aproximava. Ele se levantou e estufou o peito. — Lamento, amigo, estamos fechados.
Ele ignorou o aviso e continuou. O homem de aparência simples parou em frente à porta, bloqueando o caminho. — Está procurando uma surra? Eu disse que estamos...
Sem hesitação, o bruxo deu um soco na barriga do homem, jogando-o no chão. Ofegante, o homem rolou de um lado par o outro, esforçando-se para respirar.
O bruxo deu um comando casual ao homem, "Fique", e entrou na estalagem.
No lado de dentro, o grupo de bandidos estava reunido à volta das mesas, vasculhando os itens que tinham coletado da caravana. O murmúrio da conversa deles se transformou em silêncio quando o bruxo entrou. Todos encararam o intruso.
— Onde eles estão? — perguntou o bruxo, calmo e composto.
Depois de um breve momento de surpresa, a mulher magra pegou a besta que estava sobre a mesa.
— Não se dê ao trabalho...
Ela esticou a corda e rapidamente encaixou uma flecha enquanto o bruxo revirava os olhos. — Quem... quem é você? — perguntou ela.
Ele estalou o pescoço e colocou a mão sobre o cabo da espada. — Onde eles estão?
A mulher estreitou os olhos e assentiu para os outros, incentivando-os a se espalharem e rodearem o bruxo.
— Qual é o plano? Ficar aqui? Atacar os viajantes? Por quanto tempo acham que isso funcionará, hein? Antes que enviem a guarda e vocês todos dancem na extremidade de uma corda.
— Não... eles estão ocupados demais lidando com as revoltas na cidade. A seca causou anarquia. Eles não virão aqui em um futuro próximo, sem chance. Agora... dê o fora e deixe-nos em paz antes que eu o mate.
O bruxo inclinou a cabeça, ouvindo atentamente. — Hmm... — Ele ouviu vozes abafadas provenientes do andar inferior. — Por que capturá-los? Por que não só roubá-los e deixá-los ir embora? Seria mais simples.
— Porque... Isso... Porque... Bem... — Ela olhou em volta enquanto pensava. — Não... não é da sua é conta, é esse o motivo. — Ela mirou nele. — Último aviso, juro.
— Meu conselho... — O bruxo apertou a mão em volta do cabo da espada. — Reduzam as perdas e vão para casa.
A mulher pestanejou rapidamente, ponderando. Em seguida, começou a apertar lentamente o gatilho.
— Não faça isso... — advertiu o bruxo, preparando-se.
Ela arregalou os olhos. Já tomara uma decisão.
O bruxo desembainhou a espada.
FLEI!
A flecha voou.
Em um movimento fluido, ele aparou a flecha no ar com a parte plana da lâmina.
VUSH!
A flecha desviou de lado e atingiu a garganta de um dos membros da gangue. Ele soltou uma exclamação, engasgou com o sangue e caiu no chão. A mulher gritou "AAAH!". Em seguida, ficou em silêncio por causa do choque. A besta escorregou de seus dedos.
O silêncio se estendeu e, finalmente, o bruxo olhou para os expectadores. — Mais alguém?
Eles imediatamente soltaram as armas e mostraram a palma das mãos, rendendo-se e balançando a cabeça de um lado a outro. Um homem em trapos gaguejou: — P-p-por favor, senhor.
O bruxo embainhou a espada com gestos casuais. — Vão... deem o fora.
O bando andou com cautela em direção à porta da frente, com os olhos fixos no bruxo. Quando estavam perto o suficiente, correram para fora, tropeçando uns nos outros ao fugirem.
O bruxo olhou para o sangue que se espalhava lentamente em volta do bandido azarado. Ele suspirou e, em seguida, estalou a língua com pesar. — Que azar, amigo...
Ele inspecionou o aposento e encontrou um alçapão grande em um dos cantos.
Uma voz abafada veio debaixo. — Bruxo?
Ele ergueu o alçapão e viu Galanthea no pé de uma escada de madeira, olhando para cima. Ela sorriu ao vê-lo e assentiu com gratidão.
O bruxo olhou para ela por um momento e abriu um sorriso leve. — Dois a dois.
Capítulo 11
Sobre a margem rasa ao lado da estalagem, o bruxo retirava outra pá de terra onde cavava. Por um momento, ele estava de volta ao castelo de Alzur, enterrando os corpos mutilados dos seus irmãos de batalha. A voz do mago ecoava em sua cabeça: — É um pesar, eu sei. Mas precisa ser feito, meu rapaz. É necessário! — Ele fechou os olhos com força, tentando ignorar a memória, e retomou sua tarefa.
Por pero, Galanthea sentou em um banco sobre um carvalho caído, observando o bruxo enlameado. — Talvez ele quisesse uma pira...
Ele a encarou nada impressionado. Ela sorriu.
— Até que você é um grande cavaleiro de armadura brilhante, devo admitir.
Ele enterrou a pá na terra com um resmungo, retirando mais outra leva de terra.
— Acho que eu deveria o meu próprio violino... e compor uma balada sobre suas fugas.
Ele riu.
Galanthea ponderou por um momento. — É claro que eu teria que encontrar as palavras certas para rimar com "bruxo"... — Ela pausou. — Ou... Com Madoc...
O bruxo congelou, virando a cabeça lentamente para ela.
— Ele falou tão bem de você... da última vez que nos encontramos.
O bruxo saltou para fora da cova, jogando a pá dentro dela, e deu vários passos agressivos em direção a Galanthea. — Ele está tentando se meter nos meus casos agora? Me seguir por aí? É isso mesmo? Quem é você? O cachorrinho dele?
— Não trabalho para ninguém, meu bem. Foi apenas o destino que fez com que nossos caminhos se cruzassem. Mesmo assim, quando botei meus olhos em você... Ah, eu sabia muito bem para quem estava olhando.
— Que besteira! — Resmungou o bruxo. — Típico! Ele detesta não ter tudo sob controle, não é mesmo? Ele tinha que vir com essa putaria de tentar manipular! — Ele estalou o pescoço. — E aí? Ele mandou você aqui para me amaciar? Para me persuadir a voltar engatinhando de volta para a irmandade dele, hein? Nem pensar. Não pertenço a esse lugar... Nunca pertenci. É tudo uma tremenda farsa! Sou apenas um assassino, um matador.... E nunca serei nada além disso.
Galanthea deixou a sua raiva passar, inclinando a cabeça. — Ah, Madoc... Por que falar essas merdas que você sabe que não são verdade? — Ela sorriu. — Talvez você sega ingênuo. Ou apenas cego...
Madoc ficou enfurecido. — Você não...
Os olhos delas ficaram sombrios. — Você deve saber que o que ele realmente quer é...
— Sai pra lá!
— Você é tão especial para ele. Você não imagina, mesmo depois de tanto tempo, ser um dos primeiros...
— Não sou o cachorrinho dele... A droga do brinquedinho dele.
— Não, mas é claro que não...
— Ele precisa esquecer isso, caramba!
Galanthea pausou, considerando suas palavras. — É, você tem razão, é isso mesmo. Ele precisa esquecer muitas coisas. Mas você também. — Ela encarou Madoc, batendo com a mão ao seu lado. — Venha, sente-se.
O bruxo se arrastou com a mandíbula cerrada, repleto de frustração. Em seguida, ele se sentou à beira do banco.
— Você passou muito tempo inquieto, não é mesmo? — Ela deixou um momento passar, com o seu silêncio se tornando a resposta que ele não queria dar. Ela prosseguiu. — Ah, coitada de mim! Estou presa com uma aberração, um monstro...! Buá, caramba!
Madoc a encarou, impressionado com o seu tom.
— Cresce, rapaz, e supere isso de uma vez.
Ele a encarou, virando o rosto em seguida para a pradaria.
— Sempre paro para pensar por que deixei de seguir a vida de bardo. Quer saber o porquê? — Ela não aguardou uma resposta. —Porque é uma história que não vale a pena contar e, certamente, não vale a pena ouvir. Não existe uma aventura encantadora para ser encontrada, nenhum momento mágico, nenhum grande final. Apenas… uma simples verdade que não combina com a maioria. Sabe, eu nunca quis seguir essa vida para falar a verdade, foi apenas uma obrigação que acabou acontecendo... Para honrar a memória daqueles que foram. Segui, por décadas, cantando para estranhos, tocando aquela droga de violino... Tudo em miséria e sem se sentir bem. Tudo por conta da culpa. Sobreviver quando outros não conseguem... Um grande peso a se carregar. Mas, é claro, eu não precisava contar isso a você...
O bruxo murmurou algo inaudível.
— Eu só estava me privando de uma vida boa por uma causa fútil derivada de penitência.
— A culpa é sua — o bruxo resmungou.
— Sim, com certeza. E precisei de bastante tempo para perceber isso. Você não pode deixar que o passado dite o seu futuro. É um enorme desperdício de vida, uma vida de prisão por causa dos mortos e enterrados. Até Alzur, com toda sua longevidade, não conseguiu resolver este problema. Ele é obcecado com uma época que há muito se foi, uma que ele não consegue deixar para trás. Mas essa foi uma decisão que ele tomou. E você, Madoc, tem a sua escolha. — Ela pausou. — Não é o Alzur que deve moldar o seu futuro. Não por muito tempo…
Madoc permaneceu em silêncio, ponderando sobre a conversa.
— Você passou por um inferno. E eu sinto a sua dor, de verdade. Mas não cometa o erro de achar que tem o monopólio do sofrimento. Pelo contrário, você está em uma posição bem privilegiada. A maioria das pessoas precisam inventar uma desculpa para viver, mal aguentando de um dia para o outro. Com todas as aspirações negadas. E, do nada.... puf! Eles morrem e é como se nunca estivessem aqui. Já você... Você pode ir para vários lugares e fazer coisas que a maioria de nós só podem sonhar. Você pode realizar coisas incríveis, tornar o mundo um lugar melhor e ser lembrado por isso. Ignorar este dom por causa de um sangue ruim e teimosia... Bem, seria uma grande afronta com aqueles que não tiveram as mesmas oportunidades.
— Portanto, digo uma coisa a você: Alzur e sua visão que se danem. Caramba, que se danem seus irmãos que morreram também. A questão é você. Assuma o controle do seu destino e molde o futuro para melhor, antes que seja tarde. Pois, Madoc, você pode fazer isto.
O bruxo olhou para frente, com os olhos repletos de contemplação.
Galanthea estendeu a mão, com a palma para cima, olhando para o céu em seguida. — Espero que você preencha esse vazio em você. — Abruptamente, do nada, nuvens cinzentas se formaram no céu que estava há pouco completamente aberto, com uma leve chuva caindo em seguida. — Algo me diz que você não tem muito tempo.
Capítulo 12
O estalajadeiro esbarrou pelas portas da frente e caiu de joelhos na lama, com os braços estendidos para os céus. — Um milagre, louvado seja! — Ele fechou os olhos e sorriu, sentindo a brisa refrescante. — Tantos anos esquecidos, mas tantos... — Um pensamento tomou sua cabeça e ele levantou, apressado ao entrar. Momentos depois, ele reapareceu, seguido pelo halfling e o anão, com os braços repletos de panelas e vasos de cobre.
Madoc e Galanthea, ainda sentados no monte próximo, sorriam juntos ao observá-los coletando água da chuva freneticamente com os diversos aparatos.
O olhar do bruxo se virou ao céu. Ele encarou as nuvens calmamente enquanto elas saíam de um lugar específico à distância. Estranho, ele pensou, levantando as sobrancelhas. Ele coçou a garganta grosseiramente e virou a cabeça à esquerda. — Alzur...
— ... Pois é. — Disse Galanthea após um momento.
Ele tentou se desviar do pensamento e mudou de assunto. — Como... Como ele se livrou da sua maldição? Você nunca me contou.
Galanthea ponderou sobre a questão e suspirou cansadamente. — Isso, meu querido, é uma história para outro momento. E uma que não tenho prazer em contar, não vou mentir.
O bruxo franziu a testa.
Ela sorriu levemente. — Digamos que... às vezes, a vida deixa você sem boas escolhas. Nenhuma opção que dê descanso. No entanto, uma escolha sempre deve ser feita e as consequências enfrentadas, independentemente de quais sejam. Faça um favor a si e lembre bem disso, bruxo: as consequências, se ignoradas, não sumirão. E, no fim, a conta sempre deve ser paga, de uma forma ou de outra. — Ela olhou para algumas companheiras viajantes dançando alegremente na chuva fora da estalagem. — Poucos de nós vivemos uma vida boa, Madoc. E aqueles que conseguem, normalmente morrem cedo. O melhor que podemos fazer é tentar achar o equilíbrio, de alguma forma, antes de darmos nosso último suspiro.
O bruxo bufou. — A vida é uma dívida.
— Pois é.
O som da comemoração feliz foi abruptamente tomado por um estrondo ensurdecedor.
BUM!
CRÁC!
Lampejos de luzes ofuscantes, vermelhas e vermelhas, iluminaram a paisagem.
Madoc saltou com o susto e olhou para os campos no horizonte, onde os muros de uma cidade distante de Maribor podia ser vista acima das planícies. — O que ele está fazendo?
Lá no alto, as volumosas nuvens se moviam de forma nada natural no céu, escurecendo enquanto se afastavam de forma misteriosa da capital.
Repentinamente, um raio lampejou sobre a vista sombria com o estrondo de um trovão. Uma chuve leve deu caminho a uma tempestade torrencial e a brisa se tornou uma forte ventania. As nuvens cinzentas se agitavam à distância, circulando um buraco no céu que se abria. Fendas luminosas pulsavam do buraco que se espandia, lançando um espectro de cores vibrantes que dançavam pelo horizonte.
Galanthea e Madoc se juntaram aos viajantes que se reuniram na encruzilhada para observar o caos distante se desenrolar.
— Ah, não, nada bom — disse o halfling para si. — Minha nossa.
— É um portal! — Gritou o anão ao som da chuva agitada. — Que nem Ellander!
— Mas que... que... que inferno! — O rosto do soldado ficou pálido e seus olhos arregalados em descrença. — Não pode ser…
Das profundezas do ciclone distante, uma forma enorme e terrível desceu do portal. Seu corpo gigante alongado, adornado com fileiras de membros enganchados nos dois lados, se espalhou pelo céu, descendo até a cidade de Maribor.
O chão tremia conforme a terrível monstruosidade caía na fadada metrópole.
O enorme buraco se fechou com seu despertar e o espectro de luzes vívidas se extinguiu. Tudo que permaneceu foram nuvens escuras, a vista escura e a silhueta escura do monstro colossal iluminada pelos raios espamódicos. Cada lampejo revelava um um relance da enorme centopeia que destruía a cidade. Suas mandíbulas imensas batendo violentamente enquanto seu longo tórax batia nas torres protuberantes, despedaçando e esmagando-as em ruínas.
Caramba, pensou Madoc. Mas que desgraça.
Ele correu pela chuva em direção a Galanthea. Seus grandes olhos castanhos, suaves e sombrios, o encararam. — Vá — disse ela. — Ele precisa da sua ajuda... Todos nós precisamos.
Sem hesitação, Madoc correu até o posto e saltou na sela do seu garanhão. Apertando as rédeas, ele se virou uma última vez para aqueles que havia resgatado. O halfling estava ocupado usando uma caçarola para se proteger da chuva. O anão estava berrando algo que fora completamente perdido em meio à garoa que se tornou em uma tempestade violenta. O soldado, se segurando no estalajadeiro para manter o equilíbrio, estava balançando a cabeça em desespero. Galanthea, com seus olhos tristes que traíam seu medo, sorriu com esperança para o bruxo e assentiu com apreciação.
Madoc retribuiu o gesto e direcionou sua montaria para a estrada sombria, avançando com o cavalo e galopando para a cidade de Maribor. Em direção à escuridão. Em direção aos raios. Em direção ao monstro consumidor e à carnificina selvagem. Em direção à destruição, à morte e ao caos encarnado.
Adiante ele cavalgou, em direção ao seu criador.
Avante, em direção ao seu destino.